Fantasmas de Barbacena
Murilo Meniconi
A trepidante Belo Horizonte ainda não possui fantasmas.
Muito nova, muito ágil, muito iluminada, a capital de Minas não tem clima propício para as assombrações do passado, que aqui se dariam mal com os problemas do tráfego dirigido por policiais em cima de banquetas redondas, e nem poderiam galgar as escadas dos edifícios de trinta andares, já que, talvez por um anacronismo muito próprio à sua condição de abantesmas, não suportariam as filas enormes e cansativas dos elevadores. Talvez implicassem com as superlotações dos bondes e ônibus e não se dessem bem em uma cidade fanatizada pelo futebol e cinema, e movimentada pelas manhãs sadias do Minas Iate Clube.
Presumivelmente por isso, os fantasmas mineiros não imigraram para a capital. Nem as lendas. Ficaram mesmo residindo nos seus habitats primitivos, que são os austeros e sombrios casarões de Barbacena, Ouro Preto, Diamantina, São João del Rei e Serro. A menos que os nossos super-milionários – a exemplo dos norte-americanos que encomendam castelos desmontáveis da velha Escócia e os reedificam na América, com as suas lendas e as suas sombras – comprem, também, os velhos sobradões das cidades antigas de Minas e os edifiquem na avenida Afonso Pena ou no bairro de Lourdes, sujeitando-os a números, taxas de água, impostos prediais, vigilância policial, campanha dos números de metal e outras coisas agradáveis.
Por isto, esta crônica versa sobre fantasmas de Barbacena, a velha terra da política e da garoa, onde chove em junho e faz frio em fevereiro, pois as estações absolutamente certas ali são unicamente duas: sanatório e Barbacena, e ambas pertencem à Central do Brasil.
Barbacena, além disso, tem poentes incríveis, flores hollywoodescas, como Uberaba já teve zebus impossíveis e aqui temos arranha-céus muito compridos e muito preguiçosos, pois levam anos a se erguerem.
Os fantasmas barbacenenses são legítimos, maiores de cem anos, alguns de outros séculos, todos do outro mundo. Também, é natural, pois a urbs serrana, fincada no planalto da famosa Mantiqueira, a lendária Amantikiras, com seus cento e seis anos de idade, cem de arraial e Borda do Campolide, uns quinhentos de taba de índio puri da tribo dos cataguases e mais de mil toneladas de tempo pré-histórico, como asseveram os estudiosos das furnas célebres da serra da Ibitipoca – que se ergue ao sul do planalto, sombreando a cidade com seu perfil bojudo de baleia recheada – criou teias, engordou lendas e alimentou fantasmas, aromatizados com a doce essência das lendas afro-indigenas que nos são sussurradas através das gerações, nos momentos em que a política dá uma folguinha. E os fantasmas e as lendas da velha terra resistem ao tempo. E, mal o sol se esconde entre o morro do Jacó e o Monte Mário, e as primeiras estrelas brilham no oeste, iniciam a sua ronda furtiva e entram logo em serviço, uns a vigiarem supostos tesouros enterrados (onde ninguém sabe, nem mesmo eles), outros, ligados a casos de amores não correspondidos e que não foram devidamente afogados com chope. Muitos deles são apenas passeantes inofensivos e filósofos, apreciadores das madrugadas azuis e geladas da serra. Mas, agora, vêm em letra de fôrma, segundo uma velha ordem cronológica, salvo engano ou omissão.
O mais velho de todos: Aninha cara, mulher velha que passeia pela madrugada numacarrete fantôme, à procura de amor não correspondido, isto por volta de 1790, local: proximidades da Boa Morte e Cemitério.
O preto escravo que conta moedas: uma, duas, três, vinte, cinqüenta e o retinir metálico das moedas pipocando no silêncio da noite tenebrosa, local: Caminho dos Escravos, no Córrego do Neto.
A mulher de branco do Rosário. Vulto passeante, com horário fixo: três horas da madrugada, com frio ou chuva.
O encapuçado do Areão: alto, apático, elegante, discreto, silencioso, sistemático, marcial e fixo, envolto em manto macio e capuz, e que só aparece em noites absolutamente blecaute.
O capa vermelha: trata-se, na certa, de um fantasiado de diabo à cata de uma marcha de automóvel para algum baile à fantasia. Local e horário: ao escurecer, no fim do Pau de Barbas, ao sopé da colina do Pagão; este é barulhento, pois sacode guizos.
O tétrico assovio morro da Forca, atribuído ao último enforcado sem culpa, chamado Manoelzinho.
O choro convulso da criança, na pedra Menina, nas proximidades da ressaca (terras que pertencem a Joaquim Silvério dos Reis, o delator).
A mulher seca que aterroriza os lenhadores da mata do Manhanguá (caminho de Ibertioga).
A sombra do porco, que vai crescendo, crescendo (logo agora, com este preço altíssimo da banha)...
O vulto solitário, nas proximidades do morro da Forca, que se emparelha com o viajor retardatário, mas que é incapaz de lhe pedir dinheiro emprestado, mesmo sob garantia...
E a mula sem cabeça (já estava demorando) que troteia pela cidade até à Cruz das Almas; e o arrastar de correntes que se inicia no cemitério dos escravos e só termina na Campante; e a vela que virou osso, quando guardada em certa casa da ladeira da Cadeia, certa vez que passava por ali lúgubre cortejo.
Relatemos, também, o caso das duas velhas irmãs, residentes à praça dos Andradas, em tempos idos que, cedinho, postadas à janela viram passar para a missa das 4 horas, um grande número de fiéis, já há muitos anos desaparecidos deste mundo e que foram de suas remotas relações.
E aqui cabe também a história da pedra grande do Retiro da Fazenda Vista Alegre – singular monolito de considerável tamanho, colocado à mão, em tempos imemoriais sobre uma colina, como marco de algo fantasmagórico e impenetrável, ainda hoje conservada.
E o cavalo verde, verdadeiro e moderno cavalo de Tróia estacado à margem do velho caminho para São João del Rei. E não nos esqueçamos da popular e lendária cobra da Boa Morte, que vive na torre esquerda e que desce à meia-noite "para beber água" e nem do célebre e histórico cacho de uvas de brilhantes, ouro e diamantes, do fidalgo repelido, enterrado por ciúme, no caminho do Registro Velho; e também a procissão fantasma das encruzilhadas soturnas na Mantiqueira, com luminárias, velhas, tochas, mortalhas e banda de música; e tesouros enterrados, camuflados em ossadas, em recentes construções, nas ruínas da casa da Sá Batista; e a moça santa da Ressaca, e o famoso e espertíssimo capa preta que apareceu por volta de 1933, revolucionando os moradores da Boa Morte; finalmente, a atualíssima mulher da mão gelada do beco da Benta, que tem o péssimo hábito de apertar a mão dos madrugadores. São estes os fantasmas barbacenenses salvo engano ou omissão.
Podeis estar tranqüilos, ô passantes descuidados e notívagos. Estas assombrações, estes fantasmas não auscultarão vossos segredos e nem tomarão contato com vossas angústias, dúvidas e segredos políticos.
Deixai-os, que só a noite os compreende. Não os perturbeis e não interrompais sua ronda de sonho, na doçura da madrugada. Eles passarão como sombra da noite que temem a luz perturbadora da aurora. deixai passar as sombras e o sonho desaparecerá no horizonte.
Por incrível que pareça, esta crônica poderia ter também o título: Acredite se quiser.
Muito nova, muito ágil, muito iluminada, a capital de Minas não tem clima propício para as assombrações do passado, que aqui se dariam mal com os problemas do tráfego dirigido por policiais em cima de banquetas redondas, e nem poderiam galgar as escadas dos edifícios de trinta andares, já que, talvez por um anacronismo muito próprio à sua condição de abantesmas, não suportariam as filas enormes e cansativas dos elevadores. Talvez implicassem com as superlotações dos bondes e ônibus e não se dessem bem em uma cidade fanatizada pelo futebol e cinema, e movimentada pelas manhãs sadias do Minas Iate Clube.
Presumivelmente por isso, os fantasmas mineiros não imigraram para a capital. Nem as lendas. Ficaram mesmo residindo nos seus habitats primitivos, que são os austeros e sombrios casarões de Barbacena, Ouro Preto, Diamantina, São João del Rei e Serro. A menos que os nossos super-milionários – a exemplo dos norte-americanos que encomendam castelos desmontáveis da velha Escócia e os reedificam na América, com as suas lendas e as suas sombras – comprem, também, os velhos sobradões das cidades antigas de Minas e os edifiquem na avenida Afonso Pena ou no bairro de Lourdes, sujeitando-os a números, taxas de água, impostos prediais, vigilância policial, campanha dos números de metal e outras coisas agradáveis.
Por isto, esta crônica versa sobre fantasmas de Barbacena, a velha terra da política e da garoa, onde chove em junho e faz frio em fevereiro, pois as estações absolutamente certas ali são unicamente duas: sanatório e Barbacena, e ambas pertencem à Central do Brasil.
Barbacena, além disso, tem poentes incríveis, flores hollywoodescas, como Uberaba já teve zebus impossíveis e aqui temos arranha-céus muito compridos e muito preguiçosos, pois levam anos a se erguerem.
Os fantasmas barbacenenses são legítimos, maiores de cem anos, alguns de outros séculos, todos do outro mundo. Também, é natural, pois a urbs serrana, fincada no planalto da famosa Mantiqueira, a lendária Amantikiras, com seus cento e seis anos de idade, cem de arraial e Borda do Campolide, uns quinhentos de taba de índio puri da tribo dos cataguases e mais de mil toneladas de tempo pré-histórico, como asseveram os estudiosos das furnas célebres da serra da Ibitipoca – que se ergue ao sul do planalto, sombreando a cidade com seu perfil bojudo de baleia recheada – criou teias, engordou lendas e alimentou fantasmas, aromatizados com a doce essência das lendas afro-indigenas que nos são sussurradas através das gerações, nos momentos em que a política dá uma folguinha. E os fantasmas e as lendas da velha terra resistem ao tempo. E, mal o sol se esconde entre o morro do Jacó e o Monte Mário, e as primeiras estrelas brilham no oeste, iniciam a sua ronda furtiva e entram logo em serviço, uns a vigiarem supostos tesouros enterrados (onde ninguém sabe, nem mesmo eles), outros, ligados a casos de amores não correspondidos e que não foram devidamente afogados com chope. Muitos deles são apenas passeantes inofensivos e filósofos, apreciadores das madrugadas azuis e geladas da serra. Mas, agora, vêm em letra de fôrma, segundo uma velha ordem cronológica, salvo engano ou omissão.
O mais velho de todos: Aninha cara, mulher velha que passeia pela madrugada numacarrete fantôme, à procura de amor não correspondido, isto por volta de 1790, local: proximidades da Boa Morte e Cemitério.
O preto escravo que conta moedas: uma, duas, três, vinte, cinqüenta e o retinir metálico das moedas pipocando no silêncio da noite tenebrosa, local: Caminho dos Escravos, no Córrego do Neto.
A mulher de branco do Rosário. Vulto passeante, com horário fixo: três horas da madrugada, com frio ou chuva.
O encapuçado do Areão: alto, apático, elegante, discreto, silencioso, sistemático, marcial e fixo, envolto em manto macio e capuz, e que só aparece em noites absolutamente blecaute.
O capa vermelha: trata-se, na certa, de um fantasiado de diabo à cata de uma marcha de automóvel para algum baile à fantasia. Local e horário: ao escurecer, no fim do Pau de Barbas, ao sopé da colina do Pagão; este é barulhento, pois sacode guizos.
O tétrico assovio morro da Forca, atribuído ao último enforcado sem culpa, chamado Manoelzinho.
O choro convulso da criança, na pedra Menina, nas proximidades da ressaca (terras que pertencem a Joaquim Silvério dos Reis, o delator).
A mulher seca que aterroriza os lenhadores da mata do Manhanguá (caminho de Ibertioga).
A sombra do porco, que vai crescendo, crescendo (logo agora, com este preço altíssimo da banha)...
O vulto solitário, nas proximidades do morro da Forca, que se emparelha com o viajor retardatário, mas que é incapaz de lhe pedir dinheiro emprestado, mesmo sob garantia...
E a mula sem cabeça (já estava demorando) que troteia pela cidade até à Cruz das Almas; e o arrastar de correntes que se inicia no cemitério dos escravos e só termina na Campante; e a vela que virou osso, quando guardada em certa casa da ladeira da Cadeia, certa vez que passava por ali lúgubre cortejo.
Relatemos, também, o caso das duas velhas irmãs, residentes à praça dos Andradas, em tempos idos que, cedinho, postadas à janela viram passar para a missa das 4 horas, um grande número de fiéis, já há muitos anos desaparecidos deste mundo e que foram de suas remotas relações.
E aqui cabe também a história da pedra grande do Retiro da Fazenda Vista Alegre – singular monolito de considerável tamanho, colocado à mão, em tempos imemoriais sobre uma colina, como marco de algo fantasmagórico e impenetrável, ainda hoje conservada.
E o cavalo verde, verdadeiro e moderno cavalo de Tróia estacado à margem do velho caminho para São João del Rei. E não nos esqueçamos da popular e lendária cobra da Boa Morte, que vive na torre esquerda e que desce à meia-noite "para beber água" e nem do célebre e histórico cacho de uvas de brilhantes, ouro e diamantes, do fidalgo repelido, enterrado por ciúme, no caminho do Registro Velho; e também a procissão fantasma das encruzilhadas soturnas na Mantiqueira, com luminárias, velhas, tochas, mortalhas e banda de música; e tesouros enterrados, camuflados em ossadas, em recentes construções, nas ruínas da casa da Sá Batista; e a moça santa da Ressaca, e o famoso e espertíssimo capa preta que apareceu por volta de 1933, revolucionando os moradores da Boa Morte; finalmente, a atualíssima mulher da mão gelada do beco da Benta, que tem o péssimo hábito de apertar a mão dos madrugadores. São estes os fantasmas barbacenenses salvo engano ou omissão.
Podeis estar tranqüilos, ô passantes descuidados e notívagos. Estas assombrações, estes fantasmas não auscultarão vossos segredos e nem tomarão contato com vossas angústias, dúvidas e segredos políticos.
Deixai-os, que só a noite os compreende. Não os perturbeis e não interrompais sua ronda de sonho, na doçura da madrugada. Eles passarão como sombra da noite que temem a luz perturbadora da aurora. deixai passar as sombras e o sonho desaparecerá no horizonte.
Por incrível que pareça, esta crônica poderia ter também o título: Acredite se quiser.
(Meniconi, Murilo. "Fantasmas de Barbacena". O Diário. Belo Horizonte, 18 de julho de 1948, segundo caderno, p.1-2)
Acho importante resgatar estas oralidades do tempo de nossos pais e avós. Viajei na Barbacena da época deste cronista. Leonardo Lisboa.
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