domingo, 31 de maio de 2015

Fantasmas de Barbacena



Murilo Meniconi

A trepidante Belo Horizonte ainda não possui fantasmas.
Muito nova, muito ágil, muito iluminada, a capital de Minas não tem clima propício para as assombrações do passado, que aqui se dariam mal com os problemas do tráfego dirigido por policiais em cima de banquetas redondas, e nem poderiam galgar as escadas dos edifícios de trinta andares, já que, talvez por um anacronismo muito próprio à sua condição de abantesmas, não suportariam as filas enormes e cansativas dos elevadores. Talvez implicassem com as superlotações dos bondes e ônibus e não se dessem bem em uma cidade fanatizada pelo futebol e cinema, e movimentada pelas manhãs sadias do Minas Iate Clube.
Presumivelmente por isso, os fantasmas mineiros não imigraram para a capital. Nem as lendas. Ficaram mesmo residindo nos seus habitats primitivos, que são os austeros e sombrios casarões de Barbacena, Ouro Preto, Diamantina, São João del Rei e Serro. A menos que os nossos super-milionários – a exemplo dos norte-americanos que encomendam castelos desmontáveis da velha Escócia e os reedificam na América, com as suas lendas e as suas sombras – comprem, também, os velhos sobradões das cidades antigas de Minas e os edifiquem na avenida Afonso Pena ou no bairro de Lourdes, sujeitando-os a números, taxas de água, impostos prediais, vigilância policial, campanha dos números de metal e outras coisas agradáveis.
Por isto, esta crônica versa sobre fantasmas de Barbacena, a velha terra da política e da garoa, onde chove em junho e faz frio em fevereiro, pois as estações absolutamente certas ali são unicamente duas: sanatório e Barbacena, e ambas pertencem à Central do Brasil.
Barbacena, além disso, tem poentes incríveis, flores hollywoodescas, como Uberaba já teve zebus impossíveis e aqui temos arranha-céus muito compridos e muito preguiçosos, pois levam anos a se erguerem.
Os fantasmas barbacenenses são legítimos, maiores de cem anos, alguns de outros séculos, todos do outro mundo. Também, é natural, pois a urbs serrana, fincada no planalto da famosa Mantiqueira, a lendária Amantikiras, com seus cento e seis anos de idade, cem de arraial e Borda do Campolide, uns quinhentos de taba de índio puri da tribo dos cataguases e mais de mil toneladas de tempo pré-histórico, como asseveram os estudiosos das furnas célebres da serra da Ibitipoca – que se ergue ao sul do planalto, sombreando a cidade com seu perfil bojudo de baleia recheada – criou teias, engordou lendas e alimentou fantasmas, aromatizados com a doce essência das lendas afro-indigenas que nos são sussurradas através das gerações, nos momentos em que a política dá uma folguinha. E os fantasmas e as lendas da velha terra resistem ao tempo. E, mal o sol se esconde entre o morro do Jacó e o Monte Mário, e as primeiras estrelas brilham no oeste, iniciam a sua ronda furtiva e entram logo em serviço, uns a vigiarem supostos tesouros enterrados (onde ninguém sabe, nem mesmo eles), outros, ligados a casos de amores não correspondidos e que não foram devidamente afogados com chope. Muitos deles são apenas passeantes inofensivos e filósofos, apreciadores das madrugadas azuis e geladas da serra. Mas, agora, vêm em letra de fôrma, segundo uma velha ordem cronológica, salvo engano ou omissão.
O mais velho de todos: Aninha cara, mulher velha que passeia pela madrugada numacarrete fantôme, à procura de amor não correspondido, isto por volta de 1790, local: proximidades da Boa Morte e Cemitério.
preto escravo que conta moedas: uma, duas, três, vinte, cinqüenta e o retinir metálico das moedas pipocando no silêncio da noite tenebrosa, local: Caminho dos Escravos, no Córrego do Neto.
mulher de branco do Rosário. Vulto passeante, com horário fixo: três horas da madrugada, com frio ou chuva.
encapuçado do Areão: alto, apático, elegante, discreto, silencioso, sistemático, marcial e fixo, envolto em manto macio e capuz, e que só aparece em noites absolutamente blecaute.
capa vermelha: trata-se, na certa, de um fantasiado de diabo à cata de uma marcha de automóvel para algum baile à fantasia. Local e horário: ao escurecer, no fim do Pau de Barbas, ao sopé da colina do Pagão; este é barulhento, pois sacode guizos.
tétrico assovio morro da Forca, atribuído ao último enforcado sem culpa, chamado Manoelzinho.
choro convulso da criança, na pedra Menina, nas proximidades da ressaca (terras que pertencem a Joaquim Silvério dos Reis, o delator).
mulher seca que aterroriza os lenhadores da mata do Manhanguá (caminho de Ibertioga).
sombra do porco, que vai crescendo, crescendo (logo agora, com este preço altíssimo da banha)...
vulto solitário, nas proximidades do morro da Forca, que se emparelha com o viajor retardatário, mas que é incapaz de lhe pedir dinheiro emprestado, mesmo sob garantia...
E a mula sem cabeça (já estava demorando) que troteia pela cidade até à Cruz das Almas; e o arrastar de correntes que se inicia no cemitério dos escravos e só termina na Campante; e a vela que virou osso, quando guardada em certa casa da ladeira da Cadeia, certa vez que passava por ali lúgubre cortejo.
Relatemos, também, o caso das duas velhas irmãs, residentes à praça dos Andradas, em tempos idos que, cedinho, postadas à janela viram passar para a missa das 4 horas, um grande número de fiéis, já há muitos anos desaparecidos deste mundo e que foram de suas remotas relações.
E aqui cabe também a história da pedra grande do Retiro da Fazenda Vista Alegre – singular monolito de considerável tamanho, colocado à mão, em tempos imemoriais sobre uma colina, como marco de algo fantasmagórico e impenetrável, ainda hoje conservada.
E o cavalo verde, verdadeiro e moderno cavalo de Tróia estacado à margem do velho caminho para São João del Rei. E não nos esqueçamos da popular e lendária cobra da Boa Morte, que vive na torre esquerda e que desce à meia-noite "para beber água" e nem do célebre e histórico cacho de uvas de brilhantes, ouro e diamantes, do fidalgo repelido, enterrado por ciúme, no caminho do Registro Velho; e também a procissão fantasma das encruzilhadas soturnas na Mantiqueira, com luminárias, velhas, tochas, mortalhas e banda de música; e tesouros enterrados, camuflados em ossadas, em recentes construções, nas ruínas da casa da Sá Batista; e a moça santa da Ressaca, e o famoso e espertíssimo capa preta que apareceu por volta de 1933, revolucionando os moradores da Boa Morte; finalmente, a atualíssima mulher da mão gelada do beco da Benta, que tem o péssimo hábito de apertar a mão dos madrugadores. São estes os fantasmas barbacenenses salvo engano ou omissão.
Podeis estar tranqüilos, ô passantes descuidados e notívagos. Estas assombrações, estes fantasmas não auscultarão vossos segredos e nem tomarão contato com vossas angústias, dúvidas e segredos políticos.
Deixai-os, que só a noite os compreende. Não os perturbeis e não interrompais sua ronda de sonho, na doçura da madrugada. Eles passarão como sombra da noite que temem a luz perturbadora da aurora. deixai passar as sombras e o sonho desaparecerá no horizonte.
Por incrível que pareça, esta crônica poderia ter também o título: Acredite se quiser.

(Meniconi, Murilo. "Fantasmas de Barbacena". O Diário. Belo Horizonte, 18 de julho de 1948, segundo caderno, p.1-2)

Um comentário:

  1. Acho importante resgatar estas oralidades do tempo de nossos pais e avós. Viajei na Barbacena da época deste cronista. Leonardo Lisboa.

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