domingo, 31 de maio de 2015

O diabo em Ouro Preto


Augusto de Lima Júnior

Já se foram as chuvas irritantes e os primeiros frios já deitam um pouco de neblina no fundo dos vales deste delicioso Ouro Preto. Mas, como estamos na quaresma, embora as noites estreladas nos convidem a divagar por estas históricas ladeiras, ouvindo o trilar dos grilos, tenho receio de andar a horas mortas, para evitar encontros com o diabo que também é notívago.
Uma coisa que nunca ficou definitivamente apurada pelos nossos historiadores é a data certa na qual o diabo teria se instalado nestas Minas Gerais. Teria vindo nas bandeiras? Teria vindo com os emboabas? Eu penso que devemos distinguir duas espécies diabólicas que, historicamente encontramos nas crônicas do passado. Que já havia curupiras, sacis, anhangas e outros representantes da fauna infernal, isso parece coisa pacífica. Mas diabo mesmo, diabo canônico, diabo civilizado, capaz de estrepolias de vulto, estou convencido de que somente com os emboabas aqui chegou. Se alguém, porém, me contestar, estou pronto a retirar a opinião porque em coisas diabólicas tenho sempre receio de não estar com a Verdade.
O "tal" é mesmo o rei da mentira e quando a gente mexe com ele, prega mentiras até sem querer. O primeiro sinal que encontrei desse conhecido em nossa terra foi a batalha da Cachoeira, na guerra dos emboabas contra os paulistas. Próximo do vizinho arraial cachoeirense, num lugar denominado Jardim, hoje atravessado pela estrada de automóveis, estavam os paulistas descansando e se preparando para a esperada vitória sobre os emboabas no dia seguinte. Lá pela meia-noite, hora muito perigosa até hoje nestas montanhas, irromperam pelo acampamento dos paulistas, vários monstros de caras pintadas de negro, com tições acesos, que agitavam doidamente.
Foi um Deus nos acuda! Os índios carijós, que formavam a maior parte da tropa paulista, apavoraram-se com a visão daqueles demônios e debandaram todos, fugindo pelas grotas e ganhando o mundo largo...
O resultado da intromissão do diabo, na política interna das incipientes Minas Gerais, foi aquele fim trágico do Capão da Traição. Pois, a verdade é que os capetas, diabos e diabinhos, incubos, sucubos, feiticeiras, mouras encantadas, todo o séquito que ainda hoje pinta o sete, de noite, nas minas velhas e adjacências, para aqui vieram nas naus portuguesas, estabelecendo-se definitivamente. Segundo Bernardo Guimarães, havia nos arredores de Ouro Preto, um sabá completo, tal qual aqueles célebres da Idade Média. Essa informação vai por conta do grande poeta e romancista a quem dou inteiro crédito nestas rememorações diabólicas.
Deu muito trabalho o Sujo, tal como o denominavam os nossos avós e ainda o denomino eu. Pois o Sujo era um sujeito cheio de luxos, tal qual aparece na história de João Jiló, que aconteceu no Ouro Preto, no tempo em que isto se chamava Vila Rica. Nesse tempo, havia um soldado muito valente, mas homem sem fé nenhuma, e que não fossem tempos de tanta relaxação nos costumes, deveria ter sofrido um Auto da Fé para exemplo dos demais. Esse camarada só pensava em comer e não respeitava nem dia de jejum nem de abstinência. Numa sexta-feira da Paixão, quando todo mundo se entregava ao recolhimento, João Jiló resolveu ir caçar para comer um bom jantar, conforme disse a sua mulher, boa pessoa, temente a Deus, mas muito mais temente a João Jiló. Esta, rogou humildemente que aquela caçada fosse transferida para outro dia, mas João Jiló ficou duro. Iria caçar, porque iria caçar. E foi. Lá para as tantas da tarde, voltava ele da Cachoeira, com uma enorme ave preta pendurada numa forquilha. — Vamos comer esta caça! foi logo dizendo à pobre mulher escandalizada com a impiedade do marido. — Deus me livre! João Jiló, hoje é sexta-feira da Paixão e eu não faço isso. João Jiló ficou bravo e o remédio foi a pobre mulher depenar, estripar, assar o tal pássaro preto. João Jiló assentou-se à mesa, enquanto as matracas convocavam os fiéis para o Descimento da Cruz, no adro da igreja do Pilar. Comeu, comeu, comeu, e depois foi assentar-se à porta da casa, na Ponte Seca. Passando algum tempo, as tripas de João Jiló começaram a roncar e, dentro da barriga, uma voz esquisita começou a cantar uma música que muito incomodava João Jiló. No fundo da barriga, ouvia João Jiló a cantoria: — Eu quero sair, João Jiló! Eu quero sair, João Jiló... Ora, João Jiló acostumado a mandar, gritou logo: — Pois saia logo. A voz respondeu que não sairia por certo lugar natural, e deu pouco razões aceitáveis num Sujo.
Recusando todas as saídas oferecidas por João Jiló, afinal, depois de dar um estouro, o pássaro preto arrombou a barriga de João Jiló e foi pousar numa árvore defronte da casa do soldado que caiu morto no chão, por castigo do seu pecado. Muitas pessoas do tempo, viram o João Jiló morto no chão e o pássaro preto pousado na árvore. Nada tenho, pois, a contestar nessa história e somente registro a coincidência com um fato histórico sucedido em Portugal. Depois da Restauração, ficando dom João IV sem oficiais para o exército português, pediu ao rei de França que mandasse alguns. O cardeal Mazzarino organizou uma missão que enviou a Portugal. Entre eles havia um certo Jean Gilot, oficial muito competente que construiu várias fortificações no Alentejo, mas que era de grande impiedade e muito comilão. Comia tanto que morreu de um insulto, numa sexta-feira Santa, conforme se lê naHistória militar de Portugal.
Coincidência? Não sei, mas a história do João Jiló há mais de duzentos anos mete medo aos comilões de sexta-feira da Paixão. Em todas as coisas de Ouro Preto, o diabo sempre se mete e, às vezes, com certo sucesso. Havia entre os melhores cantadores de Ouro Preto, um soldado do Corpo Policial de nome Fernando, muito apreciado pelas suas cantorias acompanhadas de violão, que ele empunhava com mestria. Pois em plena Semana Santa, ele saiu da rua do Passa Dez, onde morava e foi tomar parte numa serenata do outro lado da cidade, no Alto da Cruz. A lua de quinta-feira Santa estava no apogeu e lá pelas tantas da madrugada, depois de entornar altas doses de certa bebida que chegava a Ouro Preto em barris, encontrou pelo caminho um outro seresteiro que, pelo jeito, também regressava de alguma tocata. O soldado não era invejoso e logo começou a desafiar o companheiro para irem cantando pela rua, visto que, também o desconhecido, ia para os lados do Rosário. Lá se foram os dois cantando e gozando o luar.
Quando porém, chegaram à ponte sobre o córrego do Ramos, o desconhecido embatucou e convidou o soldado a passar primeiro. Nosso herói pensou que era galantaria e, por sua vez, insistiu com o desconhecido para passar primeiro. O sujeito ficou teimoso um pouco, mas acabou cedendo, porque o nosso serenatista era mais teimoso ainda. Quanto iam caminhando pela ponte, o nosso soldado verificou que o companheiro não havia tirado o chapéu à cruz de pedra na amurada da ponte. E, olhando com atenção para os seus pés, verificou, com terror, que eles eram de pato. Não discutiu consigo nem um segundo. Encrespou o violão e cantou alto, embora com voz trêmula:
Passei pelo cruzeiro
Tirei meu chapéu à cruz
Vou cantando com o diabo
Santo nome de Jesus!
Ouvindo o nome do Redentor, assim invocado, o diabo (pois que era ele em pessoa) deu um estouro e desapareceu. Ora, se o leitor não acreditar em minha palavra, queira saber que eu também não posso jurar sobre o caso, pois estou narrando o que me contaram aqui em Ouro Preto, diante do padre João, vigário da matriz do Pilar. E depois, em coisas do diabo, a verdade é que sempre anda muita mentira no meio. De qualquer modo, de noite em Ouro Preto, só estou andando acompanhado, e com meu rosário no bolso.
(Lima Júnior, Augusto de. "O diabo em Ouro Preto". Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 5 de abril de 1957)

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