domingo, 31 de maio de 2015

O cemitério novo; Funeral pagão; Festividades religiosas; Comemoração dos mortos

Daniel Parish Kidder

Muitas são as descrições de enterros no Rio de Janeiro. Caracteriza-os o mesmo gosto pelas exterioridades e ostentações que se nota nas outras cerimônias religiosas. Variam, porém, largamente de acordo com a idade e a condição do morto. Quando se trata de criancinha, o enterro é considerado motivo de júbilo e organizam, então, uma procissão triunfal. Cavalos brancos, festivamente ornamentados, com níveas plumas na cabeça, puxam um coche aberto no qual vai um padre paramentado, de cabeça descoberta, levando ao colo, num ataúde aberto, o corpo da criança ricamente vestida e coberta de laços de fitas e de flores. Os portadores das tochas, se não inteiramente de branco, levam rendas prateadas nos paletós e tocheiros brancos.
Quando o funeral é de adulto, o contraste é o maior que se possa imaginar. O cortejo sai geralmente à noite. No dia anterior, armam um cadafalso na casa do morto. À porta, colocam um reposteiro preto. Os cavalos, o carro mortuário, os portadores das tochas, vão todos vestidos de negro. O cocheiro leva dragonas pretas sobre os ombros e, na cabeça, um chapeau de bras com pluma ondulante. O número de tocheiros está sempre em relação com o das carruagens, ao lado das quais formam alas. Vão em geral montados, e os seus longos tocheiros negros, chamejando na escuridão, produzem efeito imponente.
Quando o féretro chega à igreja, é transferido para um pedestal alto a que chamam mausoléu, coberto de panos pretos e cercado de círios acesos. Aí fica o morto enquanto celebram as cerimônias fúnebres. O corpo é depois enterrado sob uma das lajes de mármore de que o piso da igreja está repleto, ou colocado em alguma catacumba aberta nas paredes laterais do edifício.
O caixão usado no cortejo não é enterrado com o cadáver, mas, conservado na igreja ou na sede da irmandade que o aluga para tais ocasiões. Quando o corpo é colocado na catacumba, atiram sobre ele cal virgem para acelerar o processo de decomposição; depois de mais ou menos um ano, abrem novamente o túmulo e tiram os ossos, para limpá-los. Os parentes do morto mandam, então, enterra os restos mortais em uma urna que poderá ficar na igreja ou ser removida para a casa.
Em geral, porém, as urnas ficam na igreja e as famílias levam as chaves; conta-se, porém, o caso de um homem que levou os ossos de sua mulher para o seu próprio dormitório.
Tais urnas são de tamanhos e formatos variados, mas, raramente têm aparência de féretro. Algumas são grandes como mausoléus; outras, pela sua ornamentação externa, dão idéia de caixa para roupa. O lugar e as circunstâncias parecem altamente impróprios para exibição de ornamentos, entretanto, algumas dessas urnas mortuárias são enfeitadas com brocados de ouro e prata aplicados sobre cetim e veludo, para admiração dos visitantes.
Quão diferente do "pomposo e magnificente" cerimonial fúnebre dos abastados é o enterro do pobre escravo. Nem tocheiros nem ataúde no diminuto cortejo. O corpo vai balançando numa rede cujas extremidades são atadas a um longo pau apoiado ao ombro de seus companheiros. Esses enterros saem pela manhã, num andar cadenciado, os negros em fila, a caminho da Misericórdia. O cemitério dessa instituição resume-se em um terreno acanhado fechado por muros, no qual se vê pintada de vez em quando a figura de uma cabeça de cadáver.
Nesse recinto, abrem diariamente uma cova de sete pés quadrado. Aí enterram em promiscuidade os corpos dos que morrem no hospital durante a noite e dos escravos ou indigentes sepultados gratuitamente. Dessa forma, o terreno inteiro é escavado no decurso de um ano, mas, nos anos seguintes continuam o mesmo processo.
Representando essas escavações prematuras bem como o enterramento nas igrejas, sério perigo para a saúde pública, a Misericórdia comprou recentemente um vasto terreno para cemitério na Ponta do Caju, logo ao norte de São Cristóvão, para onde os cadáveres são levados por via marítima e enterrados em túmulos permanentes.
Ainda com relação a este assunto, devemos aludir a outra espécie de funeral que atesta a existência dos costumes pagãos entre os africanos do Brasil.
Os numerosos escravos da propriedade rural do imperador têm permissão de adotar os costumes que quiserem.
Logo depois de nossa mudança para o Engenho Velho, tivemos, um domingo, a atenção atraída para trás de nossa casa, por uma interminável gritaria na rua. Olhando pela janela, vimos um negro com uma bandeja de madeira sobre a cabeça, na qual levava o cadáver de uma criança, coberto com pano branco e enfeitado de flores, com um ramalhete atado à mãozinha. Atrás do negro, seguia uma multidão promíscua no meio da qual cerca de vinte negras e numerosas crianças, quase todas adornadas com tiras de pano vermelho, branco e amarelo, entoavam algum cântico etíope cujo ritmo marcavam com um trote lento e cadenciado; o que levava o corpo, parava freqüentemente e girava sobre os pés como se dançasse.
Entre os da frente, sobressaía, pela exagerada gesticulação, a mãe da criança, conquanto se não pudesse, pela mímica, determinar com exatidão se eram de alegria ou de tristeza os sentimentos que a empolgavam. Assim foram eles, até o adro da igreja onde entregaram o corpo ao vigário e ao sacristão. O cortejo voltou, então, cantando e dançando com mais veemência – se possível, – que na ida. A cena repetiu-se várias vezes durante a nossa permanência naquele bairro do Rio de Janeiro. Jamais a presenciamos, porém, em outro lugar.
As principais festas religiosas celebradas durante o segundo semestre do ano são: no dia 2 de julho, a Visitação de Nossa Senhora, em que sai uma procissão da Capela Imperial para a Misericórdia, na qual a Câmara Municipal toma parte. Nesse dia obtêm-se indulgências no convento Carmelita e na igreja de São Francisco de Paulo. O dia 21 de julho é consagrado aos Anjos da Guarda do Império; o dia 25 de julho, a São Jaime e o dia 28 à Santana, "Mãe da Mãe de Deus". O dia 15 de agosto é o da Assunção de Nossa Senhora; o dia 25, do Sagradíssimo Coração de Nossa Senhora, com procissão à noite; a 9, a de São Pedro de Alcântara, patrono do Império. A 1º de novembro, festa de Todos os Santos, com a procissão dos ossos da Misericórdia; no dia 2, comemoram-se os mortos. 8 de dezembro é o dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Império, com indulgências em vários conventos e igrejas; a 25 do mesmo mês, a Natividade de Cristo.
O estrangeiro, provavelmente, não se interessará tanto pelas comemorações desses dias quanto pelas de 2 de novembro, consagrado à memória dos que já se foram. Nesse dia, pela manhã, há missa em todas as igrejas. Depois abrem-se os claustros para que os fiéis possam visitar, em silêncio, os túmulos de seus amigos. Quando os ossos já estão encerrados em urnas, são estas retiradas dos lugares onde ficam guardadas e arrumadas em fileiras junto à parede, no jardim contíguo. Às vezes, formam um quadrado dentro do qual o povo vai passando lentamente. Lendo-se os epitáfios, percebe-se aqui uma idade provecta, acolá, uma flor de mocidade. Saber e ignorância, riqueza e miséria, tudo reduzido ao nível comum, pela mão da morte.
E até mesmo entre túmulos a vaidade humana aspira distinção!

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